Convivendo
com o câncer
Descobertas sobre interações celulares fortalecem a perspectiva de controlar, em vez de eliminar, os tumores
Carlos Fioravanti
Descobertas sobre interações celulares fortalecem a perspectiva de controlar, em vez de eliminar, os tumores
Carlos Fioravanti
Estudos recentes, alguns deles feitos no Brasil ou
com a colaboração de brasileiros, estão mudando a forma como médicos e
pesquisadores vêem e tratam o câncer. Aos poucos os especialistas deixam de
olhá-lo apenas como um conjunto de células que se reproduzem descontroladamente
dentro de um órgão e adotam uma visão mais abrangente, que valoriza a interação
das células tumorais com as células saudáveis vizinhas. Essa compreensão
ampliada resulta do conhecimento acumulado sobre as contínuas adaptações das
células tumorais – que lhes permitem viver em ambientes prejudiciais para as
células normais – e de mapas detalhados das interações químicas das moléculas
que levam à produção de energia no interior dos tumores. O resultado é que
agora é possível entender melhor como os medicamentos habitualmente usados
contra o câncer funcionam – nem sempre como esperado – e buscar tratamentos
mais eficazes e menos agressivos ao organismo. Atualmente se encontram em
testes cerca de 700 compostos contra o câncer, com uma taxa média de sucesso de
7%.
O mapa das interações bioquímicas das células do
tumor levanta a possibilidade de medicamentos hoje indicados contra outras
doenças, como o diabetes, poderem bloquear o desenvolvimento das células do
tumor e até mesmo matá--las. Ainda são necessários anos de testes para
verificar se essa estratégia, que soma quimioterápicos tradicionais a outros
medicamentos, funcionará com os seres humanos. Mesmo que funcione, é bem
provável que não elimine de imediato a necessidade de tratamentos convencionais
como a quimioterapia e a radioterapia, em vista da gravidade e do alcance dessa
enfermidade. Todo ano quase 8 milhões de pessoas morrem por causa de câncer no
mundo. No Brasil o câncer, a segunda causa mais comum de morte (a primeira são
as doenças cardiovasculares), mata cerca de 130 mil pessoas por ano e gera
quase 500 mil novos casos, principalmente de câncer de próstata e de pulmão
entre os homens e de mama e de colo do útero entre as mulheres, estima o Instituto
Nacional do Câncer (Inca).
Agora a compreensão mais detalhada das interações
bioquímicas que ocorrem no interior das células do tumor – e entre elas e as
células saudáveis dos tecidos vizinhos – sugere que, em vez de pensar em
destruir os tumores completamente, talvez seja possível controlar seu
crescimento, de modo que o câncer se torne uma doença crônica, a exemplo do
diabetes, da Aids ou mesmo de alguns tipos de leucemia. “Os tratamentos atuais
contra o câncer são em geral muito radicais”, diz Fernando Soares, pesquisador
do Hospital do Câncer AC Camargo e coordenador do Centro de Pesquisa, Inovação
e Difusão (Cepid) do Câncer financiado pela FAPESP. “Podemos aceitar que existe
um tecido agressivo e aprender a conviver com ele.”
Roger Chammas, pesquisador da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (USP), observa: “Saímos do reducionismo, focado na
célula tumoral, para uma visão que valoriza as interações das células tumorais
com outras células e moléculas próximas”. Sua equipe, uma das que adotam essa
abordagem no Brasil, estuda os mecanismos pelos quais as células de defesa conhecidas
como macrófagos beneficiam, em vez de combaterem, as células anormais que
formam os tumores. Em outro laboratório no mesmo andar do prédio histórico
impecavelmente preservado, Maria Aparecida Koike Folgueira e seu grupo
verificaram que células de sustentação de tecidos chamadas fibroblastos também
podem favorecer a multiplicação de células tumorais, ao mesmo tempo que as
células tumorais estimulam o crescimento dos fibroblastos, de acordo com um
estudo recém-publicado no International Journal of Cancer, realizado
por Patrícia Rozenchan.
Na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), José Barreto Carvalheira testa uma combinação
de dois medicamentos – um usado normalmente para controlar o diabetes, a
metformina, e outro para eliminar tumores, o paclitaxel – para conter o
crescimento de tumores reduzindo a quantidade de glicose que eles recebem. A
estratégia tinha apresentado bons resultados em células de tumores de pulmão
cultivadas em laboratório quando ele foi ao encontro anual da Sociedade
Americana de Oncologia Clínica (Asco, na sigla em inglês), realizado no final
de maio em Orlando, na Flórida. Ali ele viveu uma situação que o fez sentir-se
ao mesmo tempo gratificado e atropelado: gratificado por ver que a pesquisa da
Unicamp com a metformina era realmente inovadora, atropelado por ver outros
pesquisadores dispostos a adotar essa mesma abordagem em pesquisas que
provavelmente correriam mais rapidamente com uma equipe maior que a dele.
O desafio de entender e modificar o ambiente
celular que permite aos tumores crescerem resgata, integra e aprofunda estudos
publicados há décadas. Soares, do Cepid do Câncer, ouviu falar em ecologia
tumoral pela primeira vez há cerca de dez anos, quando trabalhou com o médico
espanhol José Costa, professor da Universidade Yale, nos Estados Unidos. Costa
comparava os tumores a árvores em uma floresta, que não cresceriam se isolados
entre si ou cresceriam livremente se não tivessem competidores. “Na época”, lembra
Soares, “o problema era como usar esses conceitos”. Agora os conceitos e os
resultados estão convergindo e descortinando novas estratégias de trabalho.
“Temos agora a visão geral do elefante, não mais só
das partes”, celebrou Bert Vogelstein, diretor de um centro de pesquisas sobre
câncer da Universidade Johns Hopkins, Estados Unidos, no congresso de maio.
“Descobrimos todos os genes que sofrem mutações e as principais vias de
sinalização metabólica do tumor.” Segundo ele, uma célula tumoral apresenta de
50 a 100 alterações genéticas – ou mutações –, embora ainda não seja possível
saber qual delas aparece primeiro e aciona as outras. Na USP, Koike identificou
algumas causas e consequências dessas mutações: “As células tumorais
interferem na expressão de genes que estimulam o crescimento dos fibroblastos,
que por sua vez também fazem as células tumorais crescerem mais depressa”, diz
ela. Normalmente muitos genes agem ao mesmo tempo, com atividade maior ou menor
que a normal. Em células de tumores de mama, por exemplo, a atividade do gene
SP/int2 é menor que nas células normais; em consequência, a célula consegue
migrar mais facilmente para outros tecidos do corpo.
“Para um tumor dar certo, muita coisa tem de dar
errado”, comenta Luiz Fernando Lima Reis, diretor de pesquisa do Hospital
Sírio-Libanês. Segundo ele, a capacidade do tumor de interagir com as células
normais vizinhas – o estroma – é que vai definir sua habilidade de invadir
outros tecidos (metástase) e também sua afinidade por órgãos distantes. Por
exemplo, tumores de próstata frequentemente geram metástases em tecidos ósseos,
enquanto os tumores de mama podem gerar focos de proliferação no fígado, no
pulmão, nos ossos e no cérebro. “A célula tumoral precisa se comunicar com o
meio externo como parte de sua estratégia de sobrevivência”, diz Lima Reis, que
aplica esses conceitos para encontrar moléculas que indiquem como lesões de
estômago e de esôfago podem evoluir para tumores. A interface entre o tumor
e as células normais do estroma, segundo ele, pode contribuir para essa
evolução e, mais ainda, para o comportamento do tumor. “O tumor é um desastre,
que pode morrer de tanto erro que as células tumorais acumulam em seu DNA”, diz
ele. “Dados recentes sugerem que é o estroma que faz com que algumas células
das margens do tumor se mantenham menos alteradas que as restantes como forma
de sobreviver. Sempre me pareceu que o estroma era parte do tumor.”
Carvalheira está confiante. “Vai sair tratamento
novo daqui”, diz, em sua sala na Unicamp, apreciando um esquema de reações
bioquímicas que faz parte de um artigo publicado em maio na Science. Coordenado
por Matthew Heiden, do Instituto de Câncer Dana-Farber, em Boston, Estados
Unidos, esse estudo detalha um fenômeno que o fisiologista alemão Otto Warburg
havia apresentado em 1924: a capacidade de as células tumorais produzirem a
energia que lhes permite sobreviver a partir do consumo da glicose livre no
citoplasma, a região da célula entre a membrana e o núcleo celular. As células
normais em geral quebram as moléculas de glicose encontradas em um dos
compartimentos do citoplasma – a mitocôndria –, embora em situações específicas
também possam usar a glicose do citoplasma para gerar energia. Células sadias
funcionam desse modo, quando corremos, por exemplo, e a necessidade de produzir
energia para manter os movimentos é maior que a entrada de oxigênio.
Um dos resíduos dessa sequência de reações que
convertem a glicose em energia é um composto chamado lactato. O lactato também
é fragmentado, liberando íons de hidrogênio (H+) que se acumulam no interior
das células tumorais. Em consequência, o tumor torna-se levemente ácido, com um
pH (potencial hidrogeniônico, que mede a abundância de H+) de 6,5 a 6,9,
próximo ao pH do leite (6,3 a 6,6). A diferença com as células normais, que
vivem sob um pH básico (7,2 a 7,5), pode parecer pequena, mas cada ponto do pH
significa uma quantidade dez vezes maior ou menor de H+ no interior da célula.
“A acidez é o resultado de um metabolismo anormal de glicose observado em
virtualmente todo tumor”, diz o oncologista matemático Robert Gatenby, à frente
de um grupo de pesquisas do Moffitt Cancer Center, na Flórida. “Por sua vez”,
diz Gatenby, “a acidez permite aos tumores invadirem o tecido normal”.
Apoiado nesse raciocínio, Gatenby empregou uma
substância neutralizadora de acidez, o bicarbonato de sódio, usado normalmente
contra azia e má digestão, para reduzir a acidez e evitar que o tumor
originasse metástases em camundongos. Deu certo. Os animais que tomaram uma
solução com bicarbonato apresentaram metástases em menor quantidade e tamanho
no pulmão, no intestino e no diafragma, em comparação com os que se alimentaram
com alimentos ácidos ou que não tomaram nada. De acordo com o estudo publicado
em junho na revista científica Cancer Research, 80% dos
animais tratados continuavam vivos após 120 dias; do grupo controle, só 40%.
Apenas os resultados experimentais não bastaram.
Em busca de explicações, Ariosto Silva, engenheiro formado pelo Instituto
Tecnológico da Aeronáutica (ITA) com doutorado em biologia pela Unicamp e
membro da equipe de Gatenby desde o ano passado, construiu um programa de
computador que reproduz os caminhos bioquímicos pelos quais as células tumorais
e as normais aproveitam a glicose. Os resultados a que chegou, publicados na
mesma edição da Cancer Research, confirmam matematicamente os resultados
obtidos em animais.
Somados, os dois trabalhos reforçam a argumentação
de Gatenby para ver se o bicarbonato poderia funcionar em seres humanos do
mesmo modo que em camundongos. Ariosto aponta uma vantagem dessa estratégia: “O
bicarbonato já é produzido pelo organismo e não é tóxico para outras células,
diferentemente de medicamentos sintéticos”. Há, porém, um limite. De acordo com
suas simulações, a dose extra de bicarbonato não pode exceder 40% da quantidade
já em circulação no organismo. “Em concentrações mais elevadas, o bicarbonato
pode gerar desidratação e perda de peso”, alerta.
“O tumor tornou-se um pouco mais previsível”,
afirma José Andrés Yunes, pesquisador do Centro Infantil Boldrini, hospital de
Campinas que atende crianças com leucemia, frente aos resultados que ajudou a
construir por ter orientado Ariosto no doutorado. Mais previsível, mas não
necessariamente controlável. O bicarbonato de sódio já é usado em pessoas com
leucemia para apressar a eliminação de resíduos de células deixados por
medicamentos que matam células em multiplicação acelerada, mas os novos
resultados ainda não indicam com segurança que se trata de uma substância
efetivamente útil para tratar o câncer.
“Temos agora de examinar se o bicarbonato não reduz
a eficácia ou amplia a toxicidade dos medicamentos usados no tratamento de
câncer”, diz Yunes. Chammas imagina que o controle da acidez poderia em
princípio ajudar a deter tumores cercados por células sadias, mas dificilmente
as mais distantes de vasos sanguíneos: “O bicarbonato poderia aniquilar as
populações de células tumorais sensíveis à acidez, mas não controlar as
metástases, porque as populações de células tumorais são muito diferentes entre
si e podem utilizar diferentes mecanismos de sobrevivência”.
A possibilidade de usar uma substância utilizada
contra a azia gerada às vezes pelo excesso de café para conter o crescimento de
tumores, embora possa parecer simples demais para funcionar, resulta de uma longa
argumentação científica.
Gatenby lançou em 1995 em dois artigos, um na Cancer
Research e outro na revista Journal of Theoretical Biology,
sua hipótese de que a intensificação da glicólise em células tumorais poderia
gerar acidez. Essa acidez, por sua vez, poderia modificar o ambiente do tumor a
ponto de selecionar as células tumorais, deixando apenas as mais resistentes.
Seria decisiva também para determinar o desenvolvimento do tumor, por causar a
morte das células sadias próximas e permitir às células tumorais migrarem
para outras regiões do organismo. “A hipótese inicial foi recebida com
ceticismo e falta de interesse”, comentou Gatenby.
Seus trabalhos seguintes levaram em conta também as
seis características típicas das células tumorais que Douglas Hanahan, da
Universidade da Califórnia em São Francisco, e Robert Weinberg, do Instituto de
Tecnologia de Massachusetts, apresentaram em um artigo de revisão de uma edição
especial da revista Cell em janeiro de 2000. Comuns a mais de
cem tipos de câncer, essas seis características correspondem a sucessivas
adaptações ambientais de uma célula normal até se transformar em uma célula
tumoral capaz de migrar e alojar-se em outros tecidos. A primeira é a
habilidade de produzir, com independência, moléculas que estimulam o
crescimento celular. A segunda, de escapar da ação das moléculas que inibem a
proliferação celular. A terceira, de se multiplicar indefinidamente, bloqueando
os mecanismos que normalmente limitam a divisão celular. A quarta habilidade é
a de escapar da morte celular programada, um mecanismo que as células disparam
toda vez que detectam algo anormal, como a divisão acelerada. A quinta
habilidade é a de induzir a formação de vasos sanguíneos, que trazem sangue com
nutrientes e oxigênio indispensáveis para o tumor em crescimento. Por fim, a
sexta habilidade: invadir outros tecidos.
O conhecimento acumulado sobre as células tumorais
e o ambiente em que vivem abre outras possibilidades de ação. Carvalheira
cogita a possibilidade de selecionar os tratamentos mais eficazes às pessoas
com câncer: as que apresentarem resistência à insulina devem apresentar também
mais resistência aos antitumorais hoje à mão. Podem sair daí também dietas
específicas, atualmente em testes, com menos carboidratos e mais proteínas, de
modo a fortalecer as células normais e a enfraquecer as tumorais. Ou ainda
dietas capazes de aumentar a eficiência de tratamentos já usados contra o
câncer, como a radioterapia.
As descobertas mais recentes levaram Chammas a
repensar os próprios medicamentos usados hoje para tratar o câncer. “Se o
oxigênio, que é uma molécula relativamente pequena, não chega às células
tumorais, anticorpos e medicamentos, que são muito maiores, podem também não
chegar”, diz ele. “Temos de estudar melhor como e se as drogas chegam aos
tumores.”
Diagnósticos mais precisos e precoces poderiam
emergir desses estudos sobre a ecologia tumoral. Carlos Alberto Buchpiguel,
diretor do centro de medicina nuclear do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da USP, conta que por enquanto é impossível detectar áreas do
organismo de baixa acidez, mas as de baixa oxigenação – mais aptas a abrigar
tumores – podem ser localizadas por meio da aplicação de uma molécula de
glicose com flúor em exames de tomografia por emissão de pósitrons (PET). “Se
pudéssemos fazer esse tipo de exame de modo mais amplo, poderíamos descobrir
focos novos de tumores e direcionar melhor os tratamentos”, diz ele. O problema
é que esses exames custam caro, cerca de R$ 3,5 mil cada um, e o sistema
público de saúde ainda não os paga. Outro desafio é, no mundo inteiro, a longa
trajetória da descoberta e testes de novas moléculas capazes de identificar
tumores com precisão sem causar danos ao organismo. “Só avançaremos com a integração
de especialistas de áreas diferentes.”
Soares, do Hospital do Câncer, recomenda: “É o
momento de manter os pés no chão. Os resultados experimentais podem demorar de
10 a 15 anos para se converterem efetivamente em novos tratamentos”. A busca de
medicamentos salvadores já pregou muitas peças e levantou esperanças que
depois não foram atendidas. Em 1998, por meio de uma reportagem do New
York Times, Judah Folkman, pesquisador de um hospital de Boston, anunciou
que duas proteínas produzidas naturalmente pelo organismo, a angiostatina e a
endostatina, haviam bloqueado em camundongos a formação dos vasos sanguíneos de
que o tumor necessita para crescer.
Folkman havia alertado que os resultados eram
iniciais, mas James Watson, um dos descobridores da estrutura da molécula de
DNA e ganhador do Prêmio Nobel, comentou na mesma reportagem do New
York Times que Folkman curaria o câncer em dois anos. Como
se sabe, não curou. Mas hoje cerca de 1,2 milhão de pessoas tomam algum dos
cerca de dez medicamentos inspirados na possibilidade de bloquear o envio de
sangue para os tumores em crescimento; pelo menos 50 compostos estão sendo
testados com base nesse mesmo princípio.
Um dos maiores desafios atuais da pesquisa em
câncer, debatido no congresso de oncologia dos Estados Unidos, é exatamente o
de transformar esse conhecimento científico em aplicações que possam beneficiar
as pessoas. Richard Schilsky, presidente do congresso e professor da
Universidade de Chicago, enfatizou a necessidade de mudanças nos modelos atuais
de desenvolvimento de novos medicamentos. Segundo ele, será difícil avançar sem
levar em conta que os testes em animais são pouco eficazes, que as populações de
pessoas são heterogêneas e que falta consenso sobre o significado da expressão
benefícios clínicos. Chammas sugere: “Temos de aprender a pensar diferente e
aceitar os desafios à nossa capacidade criativa”.
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