Uma excelente revisão de conceitos...... se deliciem com a escrita deste autor......
Desde
a segunda metade de maio, a Alemanha vem sofrendo de casos de
síndrome hemolítico-urêmica (HUS) infecciosa. Os sintomas são diarreia sanguinolenta, dores abdominais, vômitos e presença de sangue na urina, em mais
de 600 casos envolvendo até dia
05 de maio (hoje) 15 mortes. O agente causador foi confirmado
como a variante enterohemorrágica de Escherichia coli O104:H4 (EAggEC VTEC), que além da
síndrome hemolítico-urêmica causou outros 1536 casos de infecção que incluem 6
mortes.
A princípio, a contaminação foi ligada a pepinos espanhóis, fonte
que foi descartada posteriormente em um embaraço internacional que gerou a foto
da ministra espanhola abaixo. A fonte mais provável até o momento parece
ser brotos de feijão produzidos na própria Alemanha,
mas de qualquer forma não é recomendado o consumo de vegetais produzidos no
país como um todo.
Mas, para entender melhor o que está se passando, quem é esta E.
coli e como ela (não)
foi parar no pepino, precisamos ir um pouco mais a fundo...
Da fralda de bebês ao O104:H4
Isolada em 1885 pelo pediatra alemão-austríaco Theodor Escherich
das fezes de crianças alimentadas apenas com leite materno, a Escherichia
coli foi nomeada por
seu descobridorBacterium
coli-communis, ou bactéria comum do intestino. Ela só recebeu seu
nome moderno como homenagem a Theodor em 1918, e desde então é o ser vivo mais
estudado e conhecido pela ciência [1].
Sua classificação e nomenclatura foi baseada no reconhecimento de
suas moléculas por anticorpos, técnica bastante comum em microrganismos antes
das tecnologias mais recentes de sequenciamento de DNA, mesmo princípio que
serve para nomear
variantes do influenza. As variantes de seu flagelo, proteína que a bactéria usa para se
locomover no meio líquido, são chamadas de H, do alemão Hauch, no sentido de
nuvem, por causa do movimento das bactérias. Quando tratadas com álcool, elas
perdiam os flagelos, ficando sem movimento, Ohne Hauch, expondo seus antígenos
O. Hoje sabemos que os antígenos O são lipídios da membrana externa desta
bactéria. Atualmente, são conhecidos mais de 170 antígenos O e 56 antígenos H
[2]. Assim, esta linhagem recebe seu nome por conter a variante 104 de O e 4 de
H.
Conforme
o sequenciamento relâmpago feito pelo BGI (Beijing Genomics Institute), um centro de pesquisa chinês,
trata-se de uma variante inédita de O104 - que segundo o Mike,
the Mad Biologist não é tão nova assim, e talvez circule desde 2001.
Esta linhagem compartilha mais de 90% de seu genoma com a linhagem EHEC 55989
conhecida por causar diarréia grave isolada da República Centro-Africana.
De inofensiva ao EAggEC VTEC
Quando falamos E. coli, nos
referimos a uma espécie de bactéria que possui muito mais faces do que o nome
revela. Se organismos complexos como animais possuem linhagens distintas por
genes compartilhados e com algumas diferenças entre si, uma mesma espécie
bacteriana pode apresentar uma variedade de genes únicos de algumas linhagens.
Bactériastrocam
genes em uma quantidade absurda.
Graças a esta troca toda de material genético, a E.
coli é capaz de
adquirir diversos estilos de vida diferentes, de acordo com o que carrega. A
linhagem EHEC 55989 por exemplo, possui proteínas que permitem que ela se
prenda na superfície do intestino, sendo muito mais persistente que a variante
mais comum em nossos intestinos e causando diarréias graves por
conta da inflamação que desencadeia. Esta capacidade de se
ligar à células intestinais, inclusive células epiteliais em cultura, foi o que
deu seu nome, E. coliEnteroAgregativa,
EAggEC [3].
Outro gene que a linhagem O104 adquiriu e é a fonte da síndrome
hemolítico-urêmica que causa é a verotoxina. Seu nome vem da capacidade
de destruir células Vero em cultura. Esta toxina é formada
por duas subunidades A e B. A subunidade B reconhece proteínas que ficam na
superfície das células epiteliais de vasos sanguíneos e lança a subunidade A
para dentro delas. Uma vez dentro da célula, a subunidade A impede o funcionamento
dos ribossomos e bloqueia a produção de proteínas celulares, matando-a.
A destruição das células epiteliais dos capilares sanguíneos pela
VeroToxina da E. coli, ou VTEC,
faz com que estes vasos se rompam e ocorra sangramento. O sangramento nos
intestinos causa a diarréia hemolítica, e a destruição dos vasos dos néfrons,
unidades filtradoras de sangue nos rins, causa os problemas urêmicos.
Do intestino de outros animais ao nosso
Existem diversas linhagens EnteroHemorrágicas de E.
coli, as EHECs, muitas das quais habitam o intestino de animas de
criação. Como a verotoxina e outras similares precisam reconhecer proteínas de
superfície da célula, e animais como o gado e os porcos muitas vezes não
possuem tais receptores, eles podem ser hospedeiros assintomáticos destas
bactérias.
Quando a água utilizada na irrigação dos vegetais está
contaminada, ou o adubo animal no caso dos alimentos orgânicos, a E.
coli patogênica pode
sobreviver dias. E a contaminação também pode ocorrer durante o transporte e no
processamento dos alimentos, algo que não pode ser descartado neste surto
alemão. Outros casos de EHECs já foram ligados a carne contaminada, inclusive
hambúrgueres.
Um dos maiores problemas desta fonte é que muitas vezes criadores
dão antibióticos aos seus animais, para aumentar o ganho de peso ou mesmo
conservar a carne depois de processada. A consequência direta é que muitas
linhagens patogênicas possuem genes de resistência a antibióticos que
dificultam em muito seu tratamento. Esta linhagem de O104 possui genes de
resistência a pelo menos três classes de antibióticos, que incluem drogas de
uso comum como Amoxicilina, Tetraciclina e Ampicilina, segundo o
sequenciamento feito pelo BGI e o relatório
do Instituto Robert Koch.
Do sequenciamento aos blogs
Como uma boa epidemia moderna, todo tipo de dado já está
disponível sobre este surto.
A exemplo da epidemia de H1N1 de 2009, BGI
já disponibilizou o genoma da O104 no NCBI, e
vem atualizando seu Twitter constantemente com informação mais recente. Um
GitHub também já foi criado para
a análise de dados colaborativa.
Aliás, algo que me deixou
positivamente surpreso é quantidade de análise que está sendo publicada em
blogs. Sim, antes de qualquer grande artigo na Nature, Lacet ou Science, blogs
escritos por pesquisadores estão publicando as primeiras análises do genoma
sequenciado. Se quiser acompanhar, aqui vão os
primeiros posts:
Fontes:
[1] Zimmer, C. (2008). Microcosm: E. Coli and the New
Science of Life (p. 256). Knopf Doubleday Publishing Group.
[2] Schaechter, M., & Lederberg, J. (2004). The
desk encyclopedia of microbiology (p. 417). Academic Press.
[3] Wiedmann, M. (2011). Genomics of Foodborne Bacterial Pathogens (p. 133). Springer
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